QUEM É VIVO SEMPRE APARECE

Rosa e Armando se casaram em uma cerimônia cheia de pompas, jurando amor eterno. Educada que só ela, Rosa convenceu o agora maridão a um evento aberto à toda cidade. Segundo a mulher, ela não conseguiria fazer uma festa e deixar de convidar as pessoas que gostava.

Os dois formavam um casal daqueles inseparáveis. Viviam juntos para cima e para baixo e chegavam a causar inveja nos outros casais que passavam mais tempo brigando que se amando.

Armando não era um cara de se jogar fora, é verdade, mas a estrela do casal era a Rosa. Linda, extremamente educada e sempre de alto astral, a moça era venerada pela população. Não havia quem não a conhecesse e, mais do que isso, a respeitasse.

Ela, é claro, fazia jus à fama. Não deixava de desejar bom dia aos vizinhos todos os dias e oferecer bolo aos trabalhadores da região, que por sinal, conhecia todos pelo nome.

Os anos passavam e a fama do casal só aumentava, assim como o amor e cumplicidade entre os dois. Não havia um dia sequer que o Armando não voltava para casa com um presente para a esposa. Uma lembrancinha, que fosse.

Tudo corria às mil maravilhas até que num belo dia o Armando recebeu uma proposta de trabalho. O problema é que ele deveria passar quatro meses longe de casa, incomunicável. O desespero bateu e ele não sabia como fazer para ficar tanto tempo longe da amada. E, mais do que isso, como recompensa-la depois de tantos dias fora.

Mas a grana era boa e, depois de muito choro, o casal decidiu que ele deveria aceitar a proposta. No domingo a noite Armando terminou de arrumar as malas e se despediu da esposa, prometendo voltar com o melhor presente que ela pudesse imaginar.

Sem deixar de pensar um dia sequer no marido, Rosa manteve a rotina e sua educação costumeira, sendo simpática e prestativa com os vizinhos, oferecendo bolo aos trabalhadores e dizendo para quem quisesse ouvir quantos dias faltavam para o Armando voltar.

Os meses até que passaram rápido, mas no dia combinado, nada do Armando. No dia seguinte, nada de novo. Nos outros dias, a mesma história.

Rosa começou a ficar nervosa, preocupada. Conseguiu entrar em contato com a empresa que havia contratado o marido e recebeu informações de que ele havia voltado para casa em segurança.

Armando havia simplesmente sumido. Desapareceu. Ninguém tinha mais notícias.

O desespero bateu, os meses se passaram e Rosa entrou em depressão quando finalmente o marido foi dado como morto. A mulher não saia mais de casa, não queria papo com os vizinhos e muito menos oferecer bolo para os trabalhadores. Ela simplesmente não poderia mais viver sem ele.

O clima de tristeza tomou conta da casa por mais de um ano até que a Rosa resolveu vencer o luto e a depressão para voltar a sorrir.

Sem avisar ninguém, num belo dia de verão ela decidiu sair de casa para viver. Voltou a ser a boa e velha Rosa de sempre, linda, simpática e, claro, educada.

Os homens da cidade não conseguiam esconder a satisfação em vê-la novamente desfilando pelas ruas da região e, com todo respeito, começaram a dar em cima da mulher que até tentou relutar, mas acabou cedendo aos encantos do Orestes.

O Armando agora era uma página virada e não demorou muito para os dois se casarem, com direito a festa e tudo.

O novo casal vivia feliz até que em uma noite qualquer Rosa escutou um barulho fora de casa e foi até o portão para ver o que poderia ser.

A surpresa foi tanta que a mulher quase caiu preta e dura no chão ao se deparar com o Armando embrulhado para presente parado na porta de sua casa.

Ele pediu desculpas pela demora para voltar de viagem, mas explicou que havia passado esse tempo todo tentando encontrar o presente perfeito para a esposa, até entender que não haveria presente melhor nesse mundo do que ele mesmo de volta.

Educada como sempre, mesmo detestando aquela situação, Rosa só conseguia agradecer, até que o Orestes apareceu para ver o que estava acontecendo.

Ao perceber que aquele homem agora ocupava o seu lugar no coração da Rosa, Armando perdeu as estribeiras e passou a xingar a amada de tudo que era nome. Orestes, é claro, tomou as dores da esposa e tentou defender. Mas Armando não queria mais saber e partiu pra porrada.

A essa altura do campeonato a cidade inteira já estava em frente à casa, atiçada com o acontecimento. Disseram até que rolou uma bolsa de apostas para saber quem venceria a briga.

Consumido pelo ódio, Armando não teve a menor dificuldade para acabar com o Orestes, enquanto a Rosa, sem saber como reagir e com uma infinidade de pensamentos passando pela sua cabeça, assistia tudo àquilo.

Mas para o Orestes, pior mesmo do que a surra, foi o fato de ter sido obrigado a aceitar que a partir daquela noite o Armando iria morar na casa deles. Para a Rosa seria muita falta de educação não aceitar o presente.

ESCREVEU, NÃO LEU, O PAU COMEU

Carlos andava preocupado. Depois de passar a vida toda exercendo o papel de homem-macho-dominante e escolhendo ele mesmo quem seria a cozinheira da família, sua esposa havia decidido botar ordem na casa. E a primeira providência a ser tomada seria a demissão da Dona Ana, uma mulher linda, de corpo perfeito e sorriso maroto.

O velho ainda tentou argumentar, dizendo que a moça cozinhava como ninguém, que era de confiança, mas a desculpa não colou. Nem ele mesmo conseguia engolir os pratos que a Dona Ana cozinhava.

– Cansei, Carlos, cansei!

– Que foi, Rosana, endoidou?

– Não aguento mais essa cozinheira aqui!

– Essa cozinheira tem nome. É Ana.

– Não importa se tem nome ou não. O fato é que chega! Basta!

– Mas eu não to entendendo…

– Não se faça de sonso…eu aguentei essa palhaçada por anos, mas agora chega!

– Mas…

– Não tem mais, nem menos… essa porcaria de comida eu não como mais!

– Não fale assim, Rosana! Você está ofendendo a Ana!

– Não tem conversa… amanhã ela está fora! E tem mais: a partir de agora, quem contrata cozinheira nessa casa, sou eu!

– Mas a Ana…

– Carlos! Ou ela, ou eu!

Carlos achou melhor não contrariar. Pelo tom da conversa, ainda restava a dúvida sobre se a esposa havia descoberto as puladas de cerca que ele deu durante todos esses anos ou se o problema era só a comida mesmo.

Mas agora Carlos vivia um dilema. Não queria perder sua boquinha de tantos anos, mas também não aceitava a ideia de perder a esposa que tanto amava.

Resolveu engolir aquelas palavras da esposa (até porque engolir a comida da Ana era impossível) e foi para o escritório. Disse que precisava trabalhar e arrumou um tempo para pensar.

Carlos, que se orgulhava de ter as melhores cozinheiras do bairro – não que cozinhassem bem, é verdade – agora estaria sujeito a conviver com qualquer uma que a esposa contratasse.

Duas semanas se passaram e os dois não tocaram mais no assunto. Aquela conversa parecia ter virado tabu, até o dia em que a mulher chegou com a notícia de que finalmente havia contratado uma nova cozinheira.

– Mariana!

– Que foi, Rosana?

– A nova cozinheira. Chama Mariana! Começa amanhã! E olha só: cozinheira de mão cheia, viu.

– Mariana?

– É, Mariana.

O velho escutou a esposa e ficou quieto novamente. Mariana era um belo nome. Se ele tivesse sorte, seria uma moça de meia-idade, charmosa e discreta ao mesmo tempo.

Naquela noite, não conseguiu dormir. Rolava de um lado para o outro pensando na Mariana que ele nem sequer havia conhecido. Imaginou seu corpo, suas coxas, quadril, bunda, peitos. Só não pensou na comida.

Na manhã seguinte, Carlos se levantou mais cedo que o habitual, preparou o café e ficou ali na cozinha, só esperando a campainha. Ao primeiro barulho vindo do corredor, ele logo correu para abrir a porta.

O velho ficou em estado de choque. Seus olhos não podiam acreditar no que estava vendo. Uma morena de 35 anos, 1,75m de altura, coxas torneadas, seios fartos e ar pueril.

Ele não conseguiu dizer uma palavra sequer. Deixou a moça entrar e foi para o escritório. Estava radiante. Além da esposa não ter descoberto suas aventuras passadas, ainda tinha contratado a melhor cozinheira que ele já havia visto.

O tempo passou e a moça realmente se mostrava uma excelente cozinheira. Temperava a carne como ninguém, deixava o arroz soltinho, o frango sequinho e até o chuchu saboroso. Carlos e Rosana comiam como nunca havia comido antes.

Tudo perfeito, não fosse o velho ter tentado se engraçar com a cozinheira numa tarde de quarta-feira. Entrou na cozinha sorrateiramente, chegou perto da moça e encheu as mãos.

Instantaneamente o velho descobriu que Mariana, a cozinheira, era na verdade o cozinheiro, assim mesmo, com “o” no final. O susto foi tão grande que Carlos bateu as botas. Seu coração não aguentou. Morreu.

Rosana não esboçou reação. Depois de anos e anos, finalmente estava livre das traições do marido e, principalmente, satisfeita.

O PIOR CEGO É O QUE NÃO QUER VER

Orestes era daqueles homens que quando se apaixonam por uma mulher, não há Cristo que faça com que eles enxerguem a realidade. E no caso dele, a dura realidade.

Cegamente apaixonado, desde que conheceu sua amada fazia tudo por ela, a ponto de abandonar os amigos e começar uma nova vida: a vida dela.

Começou parando com o tradicional futebol de quinta-feira. Na sequência foi a cerveja de quarta que foi deixada de lado. E quando viu, não encontrava mais com os amigos de infância nem nos finais de semana.

Alguns ainda tentaram alertar, mas o Orestes não queria nem saber. O que importava é que ele estava apaixonado e feliz vivendo essa sua nova vida.

Com o tempo, Orestes foi sumindo da vida dos amigos a ponto de ser muitas vezes esquecido. E o pior, quando era lembrado, era sempre em tom de piada.

O tempo passou até que numa quarta-feira no bar do Sebastião, onde a turma costumava se reunir para ver os jogos da rodada, estavam o Augusto, o Bernardo e o Rafão quando de repente viram um vulto entrando pela porta principal.

– Ih rapaz, será que é quem eu tô pensando? – perguntou um perplexo Augusto.

– Só pode ser! – disse o Bernardo.

– Com esse jeito todo torto de andar, só pode ser ele. – finalizou o Rafão.

– Grande Orestes! – exclamaram os três em uníssono.

– Quem tá vivo, sempre aparece!

– Nem tão vivo, nem tão vivo! – respondeu o Orestes.

Depois dessa, os três ficaram preocupados e deixaram o cara falar. Orestes explicou que havia terminado o relacionamento após ter pego a mulher na cama com outro, que havia tentado se matar em vão e que comeu o pão que o diabo amassou nos últimos meses, vítima de uma forte depressão.

Mas agora o sofrimento havia passado e ele estava de volta. Pediu desculpas pelo sumiço e foi recebido de braços abertos pelos amigos.

Voltou para o futebol e na quarta-feira seguinte a turma compareceu em peso no bar do Sebastião. Até o Serginho, que andava meio sumido, resolveu aparecer.

A notícia de que o Orestes tinha voltado correu pelos grupos de whatsapp e em pouco tempo ele se sentiu abraçado e acolhido por todos que gostavam dele.

E como gostava de abraço o safado do Orestes. A mulherada fazia fila e ele só aproveitava.

Os meses seguintes da vida de Orestes foram incríveis. Ele tirou o atraso e estava feliz como nunca. Até que conheceu a Erika, uma morena de olhos azuis, neta de russos e de beleza avassaladora.

Em poucos dias, ele estava completamente apaixonado. O Augusto ficou puto e falou pra ele pular fora. O Bernardo disse que ele estava cego mais uma vez e que a vaca da Erika o faria sofrer novamente. Já o Rafão só deu um tapão na cabeça do Orestes e saiu fora.

Mas ele não queria nem saber e dizia que estava vacinado, que não cairia na mesma armadilha. E, principalmente, que não iria sumir da vida dos amigos como na última vez.

Ingênuo que só ele, obviamente caiu na armadilha e sumiu. E, pior, descobriu que o Bernardo estava certo quando uns 6 meses depois chegou em casa e pegou a Erika na cama com o instalador da NET.

Pobre Orestes. Naquele momento um filme de terror passou pela sua cabeça. Se lembrou de todo o sofrimento da outra vez, sentiu novamente a dor de corno e correu para pegar uma faca na cozinha. Era hora de tomar uma atitude.

Mas diferente do que você está pensando, ele não usou a faca para matar a Erika ou o cara da NET. Muito menos para tirar a sua própria vida.

Como havia dito para os amigos, ele estava vacinado. E com medo de outra separação traumática, Orestes não pensou duas vezes antes de furar os próprios olhos e sair berrando pela rua: “Eu não vi isso! Eu não vi isso!”.

ANTES SÓ DO QUE MAL ACOMPANHADO II

Viviam um para o outro. Anselmo e Eulália eram daqueles casais que não se vê mais nos dias de hoje.

Depois que se conheceram, há exatos 53 anos, não se desgrudaram mais. Foi uma paixão arrebatadora, daquelas à primeira vista. Primeiro beijo, namoro, noivado e casamento, tudo aconteceu muito rápido, tanto que em menos de dois anos a Eulália já estava grávida do primeiro filho deles, o Adamastor.

E depois dele ainda vieram a Suzana, o Sebastião, o Hélio e a Terezinha, a caçula da linda família que o casal construiu. Isso sem falar nos 13 netos e até 2 bisnetos.

Sem dúvida alguma Anselmo e Eulália formavam um casal feliz.

Mas naquela terça-feira de Agosto algo estranho aconteceu. Como de acostume o casal já aposentado foi ao banco conversar com a gerente. Não que houvesse algum problema financeiro, mas é que eles não tinham muito o que fazer mesmo.

Tudo corria bem até que dois homens encapuzados entraram no banco. Como em uma cena de filme, deram tiros para cima e mandaram todo mundo deitar no chão. O casal de idosos, claro, demorou mais para obedecer às ordens e acabou chamando atenção de um dos homens.

Enquanto um deles fazia a limpa no caixa, o outro foi em direção ao casal. Obviamente não demorou muito para que o clima ficasse tenso. Anselmo tentava explicar que a artrose o impossibilitava de se abaixar em alta velocidade, Eulália tentava acalmar a situação pedindo para que o marido se deitasse e o bandido gritava cada vez mais alto, mais nervoso.

O comparsa já estava com o saco de dinheiro nas mãos, pronto para a fuga, quando surgiram ao fundo os primeiros sons de sirene. O clima, que já estava tenso, ficou insustentável. Clientes nervosos e bandidos que já pareciam meio atrapalhados, agora não se entendiam mais.

Enquanto o do saco de dinheiro queria correr, o outro, que brigava com o casal de velhinhos achava melhor ficar ali e fazer os dois de reféns.

O barulho das sirenes se intensificou e Anselmo resolveu dizer que era melhor que eles se entregassem. Infelizmente a tentativa de acalmar a situação saiu pela culatra e fez com que o bandido apontasse a arma para o velho, dizendo que iria atirar.

Eulália parecia mais calma, mas quando percebeu que o gatilho seria puxado, se jogou na frente do marido e levou o tiro no lugar dele.

Ela caiu ensanguentada no chão no exato momento em que a polícia entrou no banco e acabou rendendo os assaltantes, agora assassinos.

A família, claro, ficou dilacerada com a tragédia. O velório foi de partir o coração com os filhos, netos e bisnetos aos prantos.

A cidade clamava por justiça e a polícia abriu uma investigação para entender direito o que havia acontecido, reconstituindo o crime passo a passo para quem sabe pegar o restante da quadrilha.

O que ninguém esperava, porém, era que a investigação encontrasse o líder da quadrilha tão rapidamente. No caso, a líder.

E a surpresa foi maior ainda quando o delegado apresentou a chefe da quadrilha e mandante do crime: a Eulália.

No interrogatório os bandidos, cansados de tudo aquilo, foram logo abrindo o bico e contaram o que ocorreu.

Cansada de viver sofrendo em silêncio por saber desde sempre que o velho Anselmo mantinha uma família paralela durante todos esses anos, a velha chegou para eles com muito dinheiro e uma ideia genial: simular o assalto ao banco e mata-la como se fosse um acidente, assim ela não precisaria passar por uma separação que, segundo ela, poderia expor a sua dignidade.

Ela sabia que o fim seria trágico, é verdade, mas para a Eulália era melhor morrer sozinha do que mal acompanhada.

NÃO SE METE O NARIZ ONDE NÃO FOI CHAMADO

A notícia de que um serial killer estava agindo livremente na cidade logo se espalhou e chegou aos ouvidos dos moradores que, em estado de choque, mal conseguiam sair de casa com medo de ser a próxima vítima. O pânico tomava conta das conversas entre os que se arriscavam a passar um tempo em qualquer boteco da região.

Percebendo que a cidade estava à beira de um colapso, mas com uma pulga atrás da orelha dizendo para continuar levando sua vida mansa, o ex-delegado da cidade já aposentado, no seu íntimo sabia que precisaria fazer alguma coisa. Dr. Alaor, como gostava de ser chamado mesmo tendo sido registrado como Augusto, convocou a imprensa e, demonstrando muita estupidez e querendo investigar sozinho, disse que a história do tal serial killer não passava de um boato.

Os mais inocentes chegaram a acreditar, mas logo perceberam que foram enganados, quando na mesma noite correu a notícia de que mais uma vítima havia sido encontrada. E dessa vez não era um cidadão qualquer, já que se tratava do dono da padaria. Da mesma forma que ocorrera com as outras vítimas, o padeiro foi encontrado nu, amarrado à cadeira da cozinha.

E logo que ficaram sabendo do novo crime os primeiros protestantes começaram a se amontoar na frente da casa do delegado aposentado. Além de ofender o Dr. Alaor, eles pediam também para que o velho Alaor se mantivesse de pantufas, apenas vendo o noticiário na TV.

Temendo mais protestos na frente da sua casa e, principalmente, querendo mostrar para a população que não havia perdido o faro para solucionar os crimes mais misteriosos, Dr. Alaor anunciou para quem quisesse ouvir que iria resolver o caso. E, mais do que isso, iria expor o tal serial killer em praça pública para ser apedrejado por quem quisesse se vingar.

Logo pela manhã os trabalhos começaram com uma visita à casa do padeiro. A cena era horrível e um forte cheiro tomava conta do lugar. Mas, para desespero do Dr. Alaor, depois de uma minuciosa inspeção pela casa, nada foi encontrado. Nenhum fio de cabelo, nenhuma impressão digital, nenhum sinal de arrombamento. Só mesmo o cheiro forte, já misturado com o cheiro da morte.

As investigações continuavam enquanto novos crimes iam surgindo. Depois do padeiro, foi a vez do leiteiro, o carteiro e até o açougueiro. E na investigação, a cena que o delegado encontrava era sempre a mesma: vítimas nuas, amarradas à cadeira da cozinha, nenhum fio de cabelo, nenhuma impressão digital ou sinal de arrombamento. Só o cheiro forte, misturado com o cheiro da morte.

Intrigado e animado com a investigação, todas as noites o Dr. Alaor ia para casa pensando nos crimes. Quem poderia estar cometendo essas atrocidades? Como ele, que conhecia todos os moradores da cidade, não conseguia apontar um mísero suspeito? E principalmente, o que sua mulher iria pensar dele caso não conseguisse resolver os crimes?

As dúvidas na cabeça do ex-delegado só aumentavam quando chegou a notícia de que dessa vez quem tinha se dado mal havia sido o tintureiro. E depois de mais um dia inteiro de investigações sem encontrar nada além do cheiro forte misturado com o cheiro da morte, Dr. Alaor entrou em casa e percebeu algo familiar no ar. Pensou, cheirou, inspirou e notou um cheiro forte. Não tão forte como o cheiro forte misturado com o cheiro da morte, mas também forte.

O que poderia ser um bom sinal, um indício para a solução dos crimes, se tornou motivo de desespero quando ele percebeu que o primeiro e único suspeito das barbaridades que estavam ocorrendo na cidade não era um suspeito, e sim uma suspeita.

Com tristeza no coração e em silêncio, Dr. Alaor passou a seguir aquele cheiro forte e a investigar sua própria mulher. Juntou provas, ligou descobertas e encontrou indícios até ter a triste certeza de que a assassina era ela mesma.

Finalmente numa bela noite o Dr. Alaor decidiu ficar na surdina, de tocaia e antes que sua esposa pudesse cometer mais um assassinato, foi surpreendida por ele, que além de salvar a pele do bombeiro e acabar com a série de crimes que aterrorizava a cidade, descobriu também que a mulher não passava de uma vadia.

Como prometido, a expôs em praça pública. E foi o primeiro a jogar uma pedra, para mostrar que não estava para brincadeira.

Agora, se por um lado a cidade toda estava aos pés do Dr. Alaor, um verdadeiro herói, como diziam os mais entusiasmados, por outro lado ele estava humilhado e desolado com o fato de todo mundo saber que, além de herói, ele era também o maior corno da história da cidade. Depois de muitas noites em claro, sem conseguir colocar a cabeça no travesseiro, talvez por medo de quebrar os chifres, Dr. Alaor decidiu deixar de ser doutor e também Alaor. Com o orgulho ferido, colocou o rabo entre as pernas, voltou a ser Augusto e deixou a cidade. O Dr. Alaor estava acabado, mas havia aprendido uma lição: não se deve meter o nariz onde não tenha sido chamado.

EM BRIGA DE MARIDO E MULHER, NINGUÉM METE A COLHER

Era o aniversário de 3 anos de casamento de Fernanda e Paulo Roberto e, justo naquela manhã, a mulher voltaria das férias de 1 semana no spa. Fernanda chegou com um corpo escultural de fazer inveja em qualquer miss ou dançarina de axé. Mas foi só botar os pés dentro de casa que Paulo Roberto já foi logo falando.

– Quanto tempo, querida!

– Saudade de mim?

– Você sabe que eu não aguento ficar longe dessa sua barriguinha de chope.

– Barriga de chope é a puta que te pariu, seu saco de bosta!!!

Cheia de raiva do marido, Fernanda não teve dúvidas: pegou o carro e foi direto para o cabeleireiro. Ao voltar para casa, toda cheia de si com o novo visual, Paulo Roberto não deixou por menos.

– Cortou o cabelo, é?

– Não acredito, você reparou!!!

– O que aconteceu, o cabeleireiro tava bêbado?

– Seu viado imbecil…vá se foder!

Como se tratava de uma data especial, ela achou melhor esquecer os insultos e ir tomar um banho e se arrumar para o jantar de comemoração. Fernanda se produziu toda, colocou seu vestido novo e foi logo tratar de fazer charme para o marido. Paulo Roberto a olhou dos pés à cabeça e não titubeou.

– Huuum…

– Que foi, amor?

– Esse vestido…

– É novo, gostou?

– O vestido é até bonitinho…o conteúdo é que não ajuda.

– Vai tomar no olho do seu cu, corno filho da puta.

Mesmo extremamente irritada com aquilo, resolveu engolir o orgulho e topou sair para jantar, onde tudo correu bem. Ótima comida, vinho delicioso, mas já era hora de voltar para casa.

Paulo Roberto tirou a roupa e foi logo para cama enquanto a mulher foi até o closet. E quando Fernanda se preparava para deitar ao seu lado, a imagem que ele viu foi a de sua esposa com um baby-doll vermelho quase transparente. Ele respirou fundo e soltou o verbo.

– Que roupa é essa, Fernanda?

– É pra você, amor.

– Ficaria mais sexy no botijão de gás.

– Seu merda. Viado. Filho da puta. Cuzão. Pau no cu do caralho!! Vá se foder, porra!!!

A partir daí o pau comeu. O barulho acordou a vizinhança, que prontamente chamou a polícia para tentar acabar com aquilo. E quando os tiras finalmente chegaram para levar Paulo Roberto em cana, se depararam com a cena da mulher acabada na cama enquanto o homem fumava um cigarro tranquilamente.

O policial não perguntou nada e foi logo algemando o sujeito. Fernanda, desesperada, dizia para pararem com tudo aquilo, que era um mal-entendido e que o marido era um homem bom enquanto Paulo Roberto era arrastado para o camburão gritando apenas uma frase:

– Eu tenho tesão com palavrão em boca de mulher! Eu tenho tesão com palavrão em boca de mulher!

QUEM RI POR ÚLTIMO, RI MELHOR

Pablo já nasceu fazendo cagada: por culpa do seu cabeção totalmente desproporcional, matou a mãe no parto. O pai, coitado, ele nem teve a chance de conhecer. Fruto de um relacionamento de sua mãe com um cliente, na escola era chamado de filho da puta e não podia reclamar. Aliás, para chamar aquilo de escola era preciso muita boa vontade. A escola de Pablo foi a da vida. Vida de merda, diga-se de passagem. Por onde passou, só aprendeu coisa errada.

O garoto cresceu mal sabendo assinar o próprio nome. Conjugar um verbo, então, era praticamente impossível. E foi dessa forma, aos trancos e barrancos, que Pablo precisou tentar ganhar a vida.

Tentou arrumar um emprego, mas era estúpido demais para isso. Pensou em pedir esmola, mas mesmo se tratando de um imprestável, era um imprestável orgulhoso que só ele. Viu as portas do mundo do crime se abrirem em sua frente, mas tinha boa índole, o infeliz.

Sem dar conta de arrumar dinheiro para se sustentar, juntou suas tralhas e decidiu virar andarilho. Não por convicção, visto que ele jamais poderia imaginar o que vem a ser convicção, mas por não ter mais o que fazer da vida mesmo.

E por onde Pablo passou, só se viu desgraça. O rapaz estava em Mariana quando a barragem cedeu e também no terremoto no Chile. Participou da marcha em apoio ao Maduro na Venezuela e quando fugiu para São Paulo, chegou no dia que o prédio pegou fogo e caiu no centro da cidade. Dizem até que esteve visitando Brumadinho dia desses, mas eu acho que isso já é boataria da brava.

O fato é que a fama de Pablo ganhou as ruas e fez com que ele fosse extremamente malquisto por onde passasse. Desiludido com todas as tragédias que até ele já acreditava ter influência, Pablo decidiu parar.

Arrumou uma sombra daquelas bem grandes, se encostou e por lá ficou. Não por muito tempo, claro. Para seu desespero logo o outono chegou, as folhas caíram e a sombra acabou.

Cansado de sua vida desgraçada sem um mísero motivo para ser feliz, Pablo decidiu botar um fim naquilo tudo. Mas nem para se matar o infeliz servia.

Sem saber mais o que fazer, ele raciocinou e entendeu – não se sabe como – que para acabar com a sua vida de merda de uma vez por todas era necessário mudar. A começar pela sua cara de acabado desgracento.

Encontrou um barbeador no chão e fez a barba. Se cortou, claro, mas sorriu. E gostou.

Decidiu que a partir daquele momento sua vida seria diferente. Sem desgraças, sem tragédias, sem chateação. Assim seria o seu novo eu.

Só faltou combinar com o destino, né Pablo. Porque foi só andar umas duas quadras para presenciar uma confusão de uma velhinha com seu cachorro no meio da rua que lhe rendeu um sorriso. Com o desenrolar da situação o sorriso virou gargalhada, que em poucos segundos logo se transformou em um ataque de riso arrebatador. E o pobre do Pablo riu tanto que acabou engasgando, sufocou e morreu ali mesmo.

Morreu de rir, o que não deixa de ser triste, mas morreu feliz.

QUEM TEM PRESSA COME CRU

Nasceu de 7 meses. Não por má formação ou algum problema na gravidez da mãe. Simplesmente nasceu de 7 meses.

Ótimo ouvinte, logo aprendeu a falar. Mais do que isso, aprendeu a completar as frases de quem conversava com ele. Como uma adivinhação mesmo. Era a pessoa começar uma frase, que ele completava, entendendo do assunto ou não.

Alguns diziam que era um dom. Os mais místicos, que se tratava de uma criança agraciada. Mas em uma coisa todos concordavam: o menino era diferente.

Enquanto ainda era uma criança, achavam fofinho, uma graça. Já quando ele começou a se tornar um homenzinho, as coisas tomaram um novo rumo.

Na escola, era só a professora começar a explicar uma matéria nova, que ele logo se intrometia e teimava em terminar a frase. Não importava se era História, Geografia, Matemática, Química ou Biologia. O menino, agora já um garoto, dava sequência a qualquer explicação. E o mais assustador: ele fazia isso com a maestria que só quem entendia do assunto poderia fazer.

Tamanha astúcia fez com que o garoto se tornasse um símbolo da escola e até da cidade. Chegou a virar ídolo. Até o prefeito chegou a tirar fotos com ele – o que não se faz por uma reeleição, não?

Virou símbolo sexual, tinha filas de garotas querendo conhecer melhor o tal garoto que sabia de tudo. Parecia que a vida estava ganha para ele, até que, à boca pequena, invejosos começaram a dizer que se tratava de um sujeito extremamente inconveniente.

Revoltado, resolveu tirar proveito da fama alcançada ainda na escola. Como sabia que todos na cidade confiavam em qualquer complemento de frase que ele falasse, decidiu então criar novos finais para as histórias que as pessoas tinham para contar. Era só um sujeito começar a sua, que ele logo mudava o contexto das palavras – e também o final. Criava verdades. Transformava padres em pecadores, esposas fiéis em infiéis, bandidos em mocinhos e mocinhos em bandidos. Não adiantava o sujeito espernear, todos na cidade acreditavam nos finais que o jovem inventava.

A cidade, antes tranquila, virou uma confusão. Excomungações, divórcios, prisões indevidas. Parecia que todo mundo tinha o rabo preso, ninguém mais tinha coragem de falar nada. E o garoto ali, rindo sozinho.

Esperto, quando começaram a não mais falar perto dele, ele parou de inventar finais e voltou a completar histórias só com verdades. Mas o mal já estava feito, a cidade já estava de ponta cabeça, de pernas para o ar. E ninguém mais tinha coragem de abrir a boca em sua presença.

A fama de desagradável se alastrou pela região rapidamente e em pouco tempo ele já não tinha com quem conversar, até que decidiu desaparecer para não mais voltar.

A cidade nunca mais voltou ao normal. Ninguém confia no passado de ninguém e até hoje se comenta sobre o inconveniente garoto diferente que, na verdade, de inconveniente não tinha nada. Ele apenas ouvia depressa demais.

É DANDO QUE SE RECEBE

Catarina queria porque queria ser mãe. Desde sempre falava do seu sonho para quem quisesse ouvir. Era assunto recorrente em qualquer uma de suas conversas. Pensava nisso o dia todo. Não conseguia dormir a noite. E quando conseguia, acordava de madrugada com desejos de grávida, mesmo sem estar grávida. Aliás, nunca havia estado.

Por via das dúvidas, deixava a mala da maternidade sempre pronta. Na rua, tinha inveja daquelas mulheres que desfilavam com seus barrigões. E raiva das mães que passeavam com seus bebês. Aquele sonho de menina tinha virado obsessão.

Quando resolveu morar sozinha, foi logo mobiliando um dos quartos com berço, trocador e tudo mais o que tinha direito. E, mês sim, mês não, fazia questão de reformar o quarto do bebê para deixar sempre tudo em ordem.

Esse desejo incontrolável espantava namorados. Homem nenhum queria saber dela. A não ser os vasectomizados. Mas desses aí, era ela quem não queria nem chegar perto. Sua vida girava em torno do bebê que nunca havia chegado perto de existir.

Quando já não aguentava mais o sofrimento pelo sonho não realizado, Catarina resolveu dar para o primeiro que aparecesse. E para o segundo. E para o terceiro. Mas engravidar que é bom, nada.

Pensou em adotar, mas não seria sangue do seu sangue. E deu para o quarto, para o quinto e para o sexto. Depois de cada transa, corria para fazer o teste de gravidez e nada. Nenhum óvulo fecundado.

Deu para o sétimo, para o oitavo, para o nono, para o décimo terceiro, para o vigésimo, para o vigésimo oitavo. E nada da barriga crescer. Pelo contrário. O exercício era tanto, que ela só emagrecia.

Catarina pegou gosto pela coisa. Passou a dar para qualquer um. Não importava se o cara era branco, negro, mulato, alto, baixo, anão, perneta ou banguela. Se era gordo, magro, vesgo, cego, surdo ou mudo. O que importava era dar.

Finalmente ser mãe deixou de ser uma obsessão. Para ela, ser filha da mãe dava muito mais prazer.

O SEGURO MORREU DE VELHO

No dia que nasceu o Pedro, já se sabia que sua vida seria complicada. Prematuro, o menino tão aguardado por todos os familiares, precisou passar seus primeiros 20 dias de vida numa incubadora.

Frágil como poucos, foi para casa sob cuidados extremos. E chegando ao quarto, a situação continuou a mesma: câmeras por todos os lados, isolamento acústico, estabilizadores de temperatura e tudo mais o que poderia garantir a segurança do neném estava à disposição.

O menino cresceu, ganhou peso e foi vacinado contra todas as doenças possíveis. Demorou a entrar na escola para não correr o risco de ser contaminado por qualquer tipo de vírus e não recebeu nenhum tipo de visita durante seus primeiros dois anos.

Aos poucos, obviamente, Pedro foi sendo introduzido à sociedade. Mas todo o medo dos pais foi passado para o garoto como que por osmose e o começo da sua vida social não foi nada fácil.

Tímido e ainda franzino, era alvo de todo tipo de zoação no colégio. “Cagão!”, “seu bosta!” e “pau no cu!” eram os adjetivos que mais ouvia e ignorava. Pedro tinha receio de entrar em conflito e levar a pior.

O percurso casa-escola-casa estava cada dia mais complicado e demorado. Só andava pela sombra e fazia questão de fazer sempre caminhos alternativos para não correr riscos.

Com medo de tudo, o garoto foi se fechando e se isolando cada vez mais. Não tinha amigos, não fazia esportes e começou a faltar na escola repetidamente. Mesmo com apenas 15 anos, ele sabia que alguma coisa precisaria ser feita. E fez.

Indo contra todas as suas convicções, decidiu que a partir daquele momento viveria a vida como a de qualquer garoto da sua idade. Livre e cheia de incertezas.

Os primeiros dias dessa nova fase foram emocionantes. Foi para a escola, fez amizades, aprendeu a andar de bicicleta e até entrou em uma briga depois de ser chamado de “medroso”. Levou uma surra, claro, mas Pedro estava tão feliz com a vida nova, que nem sem importou.

O jovem garoto se sentia curado do trauma causado pelos seus pais ainda nos seus primeiros dias de vida.

Doce ilusão, Pedro.

Algum tempo passou até que um simples tropeção na calçada fez todos os anos de cuidado extremo voltarem à tona.

O garoto, agora adulto, caiu e bateu a cabeça. Precisou ser internado com urgência e chegou a passar alguns dias na UTI. Ao voltar para casa, botou a mão na consciência e entendeu aquele acidente como um recado divino. Ele deveria voltar a se proteger.

Nesse momento, Pedro só tinha uma certeza na vida: não queria morrer e faria de tudo para evitar essa possibilidade.

Mais do que nunca, Pedro voltou a cuidar de si mesmo. Aproveitou que já tinha acumulado um bom dinheiro investindo na bolsa (bons tempos em que tomava riscos sem grandes preocupações) e pediu demissão do seu emprego. Definitivamente, ir todos os dias até o trabalho não era seguro.

Passou a recusar certos convites, deixou de ir à bares com os amigos e parou de beber bebidas alcoólicas. Parou também com a carne vermelha e, claro, passava longe de fast-foods.

Vendeu a bicicleta, aposentou as chuteiras e abandonou o grupo de corrida.

A esta altura do campeonato Pedro já quase não saia de casa. Blindou as janelas, com medo de alguma bala perdida e passou a pedir comida pelo telefone. Fixo, claro. Não queria ser exposto às ondas transmitidas pelos telefones celulares.

Decidiu deixar de comer qualquer tipo de carne, vendeu o fogão com medo de uma explosão e passou a dormir no chão para não correr o risco de cair da cama. Banho, só gelado. Vai que algum fio do chuveiro elétrico estivesse solto.

Pedro já não saia de casa. Não interagia com outras pessoas e não ingeria nenhum tipo de alimento que pudesse lhe fazer algum mal. Estava magro, é verdade, mas estava seguro.

Depois de tantas mudanças, ele finalmente se sentia livre de todos os perigos da vida.

Sentimento esse que o encheu de felicidade e fez com que ele se sentisse o homem mais feliz do mundo. Por apenas algumas horas, é verdade, porque de tanto se proteger de tudo e de todos, seu corpo não aguentou e seu coração parou de bater.

Tinha tanto medo de morrer, que acabou morrendo de medo.